Uma Regra Fiscal para 2023

Publicado no Jornal Valor Econômico em 21/09/2022.

Os regimes macroeconômicos modernos são construídos a partir de um problema de otimização dinâmica. Isto revela que a condução das políticas fiscal e monetária devem ser temporalmente consistentes. Neste aspecto, uma eventual melhora dos indicadores fiscais em 2022 acompanhados de uma piora esperada dos mesmos indicadores a partir de 2023 são contraproducentes. Os agentes econômicos são racionais e sabem que a melhora presente tem se dado sob bases artificiais que não serão sustentáveis a longo prazo. Ademais, o excesso de discricionariedade que levou ao descumprimento do conjunto de regras fiscais no país serviu para minar a credibilidade da política fiscal e aumentar a desconfiança quanto a vulnerabilidade que tal política está exposta a depender dos interesses do presidente de plantão.

Para funcionar bem, o regime de regras monetárias depende de algum grau de coordenação com a política fiscal. Sargent e Wallace (1981) argumentam que os instrumentos dos Bancos Centrais (BCs) só são eficientes enquanto estabilizadores da inflação, mediante a um regime de coordenação calcado na dominância monetária. Segundo os autores, tal regime é calcado pela imposição de travas à política fiscal. Ou seja, quando o fiscal é disciplinado por regras, os BCs não têm a obrigação de financiar déficits via emissão de títulos ou via senhoriagem, estando livres para perseguir suas metas de inflação. Neste arcabouço teórico, não há política monetária eficiente sem uma política fiscal dinamicamente consistente.

Desde que a economia brasileira adotou o regime de metas de inflação em 1999, o BC brasileiro só foi eficiente em manter a inflação no centro da meta, quando na presença e no cumprimento de regras fiscais. No início, foram instituídas um conjunto de regras visando tornar sustentável a longo prazo esta política. As metas de resultados primários; a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); somado à reestruturação das dívidas dos entes federativos e às duas reformas da previdência (1999 e 2003) que sucederam o período, permitiram ao Brasil crescer com estabilidade macroeconômica por mais de uma década que se seguiu. Este arcabouço permitiu ao país performar bem durante a crise de 2008.

O regime de metas monetárias deixou de performar bem a partir da primeira metade da década de 2010, quando a dose de estímulos de demanda foi levada a um novo patamar. Naquele momento, a política fiscal foi capturada por interesses políticos que redundaram na sua precarização. Subterfúgios como contabilidade criativa e pedaladas fiscais impuseram à política fiscal danos à sua transparência e credibilidade (Almeida, 2014). No front monetário, o BC abandonou a meta de inflação e passou a perseguir uma meta implícita coincidente com o teto formal da meta (Costa Júnior, 2022).

O supracitado modelo de coordenação entre as políticas monetária e fiscal, foi denominado Nova Matriz Macroeconômica e tinha na sua concepção, uma organização das políticas macro calcadas no aumento da discricionariedade e eram, portanto, dinamicamente inconsistentes. Em 2013, sinais de esgotamento desse modelo já se fazia sentir nos dados, entretanto, o avizinhamento das eleições tornou os objetivos políticos da presidente reféns de políticas macro inconsistentes. Resultado? Em 2015 o Brasil mergulhou em uma longa e profunda crise do produto e do emprego, contrastando com inflação descontrolada e persistente, que coexistiam com déficits gêmeos (públicos e externos) que beiraram 10% do PIB.

O impeachment de 2016 aliviou o stress e serviu para oxigenar as expectativas e a credibilidade das políticas fiscal e monetária. Ainda naquele ano, um Novo Regime Fiscal foi proposto e aprovado, estabelecendo um teto por 10 anos ao gasto público primário da União. De lá para cá, o ambiente macroeconômico nacional melhorou consideravelmente, apesar dos inúmeros choques políticos e econômicos (exógenos) que acometeram o país no período e que precisaram ser acomodados pela política macro.

Em 2020, no entanto, mediante a pandemia, foi verificado o excesso de rigidez no teto de gastos que não contempla gatilhos cíclicos para suavizar os efeitos de choques exógenos de curto prazo. Os objetivos de uma regra fiscal como o teto tornaram-se descolados dos objetivos das demais políticas públicas que deviam aliviar o sofrimento humano naquele novo contexto. Isso se tornou matéria legislativa e já no começo daquele ano, a PEC 10/2020 (orçamento de guerra) foi proposta e aprovada pelo Congresso, permitindo a criação de um orçamento temporário e extra teto para fazer face às necessidades de despesas.

Já em 2021, novamente com o avizinhamento das eleições e sem o subterfúgio legal do orçamento de guerra, o incentivo para usar as políticas macroeconômicas em benefício dos interesses políticos do presidente se impôs. A política monetária encontra-se blindada da discricionariedade política, graças à autonomia legal adquirida em meados de 2021. Já a política fiscal vem sendo alvo de um conjunto de intervenções discricionárias, desconectadas de qualquer objetivo mais amplo e com o único objetivo de tornar o presidente competitivo nas eleições. De lá para cá um conjunto de matérias com elevado impacto fiscal têm sido aprovadas na Constituição: precatórios; ICMS dos combustíveis; Kamikaze; entre outras. Pior ainda, tais estímulos fiscais têm sido pró cíclicos, ou seja, dados quando a dinâmica do PIB apresenta sinais de aceleração.

Nos últimos 20 anos muito se aprendeu sobre regras fiscais: primeiramente, elas não devem ser legisladas via Constituição, o que dificulta politicamente revisões diante de mudanças de conjuntura. Em segundo lugar, elas precisam ter no texto gatilhos anticíclicos a serem acionados em contextos de crise. A presença de tais gatilhos devem ser temporalmente consistentes. Ou seja, quando o PIB retrai abaixo de um certo percentual, despesas com certas rubricas (investimentos e transferências sociais) devem crescer. Porém quando o PIB cresce, as despesas de custeio devem crescer abaixo da taxa de crescimento do PIB abrindo espaço fiscal para investimentos públicos. Finalmente, elas têm que ser especialmente duras com políticos que visem descumpri-las em períodos eleitorais, subvertendo a seu favor o processo democrático e pondo em risco o equilíbrio macroeconômico de longo prazo do país.

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