As Raízes Fiscais da Inflação

Publicado no Jornal Valor Econômico em 04/07/2022

A inflação brasileira tem se mostrado mais resiliente do que os modelos macroeconômicos inicialmente previam e já persiste acima dos dois dígitos há meses. Quando o processo inflacionário teve início, em meados de 2021, uma tese influente que aparecia nos foros de debate público, era a de que se tratava de um choque puramente temporário, ligado a preços de commodities específicos e que brevemente haveria convergência de volta para a meta. Este diagnóstico se mostrou ainda mais sedutor quando defendido no contexto de elevado desemprego e estagnação que aflige o país há quase uma década.

Como levar a política monetária para o campo contracionista em um país cuja renda per capita segue parada há 12 anos e as taxas acumuladas de desemprego e desalento ultrapassam os 15% da força de trabalho?

Os meses se passaram e a tese da inflação temporária caiu no esquecimento. O Banco Central (BC) agiu rápido e tão logo os sintomas inflacionários persistiram, produziu o maior aperto monetário desde a instituição do regime de metas, em 1999. Ao todo, a taxa Selic partiu de 2% ao ano em março do ano passado, chegando aos atuais 13,25% e com viés de alta nas próximas reuniões.

Paralelamente à tese da inflação temporária, uma outra meia verdade tem ocupado as análises econômicas a bastante tempo. Para muitos, a inflação brasileira é causada por um choque de oferta clássico, provocado pelos efeitos da pandemia sobre as cadeias de suprimentos, somados aos efeitos da guerra na Europa sobre o preço das commodities, particularmente o petróleo.

Choques de oferta são sempre problemáticos e impõem um duro trade off aos banqueiros centrais no mundo todo, sacrificar crescimento e emprego em função de uma inflação menor? Mais ainda no caso brasileiro, cuja demanda por crescimento após uma década de estagnação é elevada. Porém, esta é apenas uma parte do problema.

Devido ao histórico inflacionário, a economia brasileira está ainda submetida a um grau elevado de indexação, seja ela formal ou informal. Isso faz com que a inflação passada tenha um peso elevado na definição da inflação presente. Isso também dificulta muito a ação do BC, cujo instrumento para lidar com a inflação é a taxa de juros de curto prazo, que só pode influenciar a inflação futura por via das expectativas. Em outras palavras, em economias caracterizadas por um elevado grau de indexação, o BC precisa produzir uma política monetária demasiadamente contracionista para conquistar as expectativas. Sem isso, há perda de credibilidade da política monetária e firmas reajustam seus preços observando o comportamento corrente da inflação e não mais a âncora monetária do BC.

Uma segunda causa para a inflação brasileira, particularmente omitida do debate macroeconômico contemporâneo, é a fiscal. Está evidente na literatura especializada e a história brasileira comprova isso, que a inflação pode ter raízes em desequilíbrios fiscais crônicos.

Desde que a economia brasileira optou por um ambiente macroeconômico pautado pela inflação baixa, pós Plano Real, a política monetária nunca esteve sozinha na missão de guiar a inflação à meta. Nos 4 primeiros anos do Real, devido às particularidades históricas como a consolidação de bens e serviços públicos previstos na Constituição de 1988 e que demandavam financiamento para sua implantação, ou ampliação, a política fiscal foi relativamente frouxa. No entanto, naqueles anos, o regime de câmbio fixo e a paridade entre Real e Dólar, auxiliaram a política monetária e foram fundamentais para o sucesso da estabilização.

A utilização da taxa de câmbio enquanto âncora macroeconômica, no entanto, depende de disponibilidade de elevados volumes de reservas internacionais e/ou superávits elevados em Transações Reais. O Brasil não tinha nem uma coisa, nem outra, logo os desequilíbrios surgiram e impuseram a necessidade de mudar o regime macroeconômico. Foi instituído um tripé caracterizado por: i) metas fiscais primárias; ii) metas inflacionárias e; iii) câmbio flutuante. Este regime macroeconômico permitiu uma melhor coordenação entre as políticas macroeconômicas que somados às melhoras institucionais que vieram a seguir, deram ao país condições de crescer com inflação baixa durante mais de 10 anos.

O supracitado processo de crescimento do PIB com inflação controlada só foi interrompido em meados da década de 2010, quando falhas de coordenação entre as políticas macroeconômicas foram intensificadas. O triênio 2014 – 2016 foi particularmente duro, e nenhuma análise séria sobre aquele período omite a contribuição da deterioração fiscal dentre as principais causas daquela inflação alta coexistindo com um mergulho recessivo inédito do PIB.

Isso porque sob falhas de coordenação, há reversão do quadro de expectativas e os instrumentos das políticas macroeconômicas perdem eficácia. Elevações de juros visando corrigir a inflação, produzem um elevado custo fiscal por vias do orçamento nominal e a inflação não cede. Já pacotes fiscais que contemplem cortes de despesas ou elevações tributárias são demasiadamente recessivos a elevam o déficit público por vias da queda nas receitas.

Existe, portanto, um ingrediente a mais que irá determinar o sucesso ou fracasso das políticas macroeconômicas, elas devem ser coordenadas e críveis, para que seus instrumentos funcionem em plenitude. Como no triênio 2014 – 16, falta uma política macroeconômica crível e coordenada hoje ao Brasil e boa parte dos economistas têm atribuído peso excessivo às causas exógenas da inflação, mas têm ignorado as falhas de coordenação que contribuem para o agravamento do quadro.

O BC tem hoje autonomia operacional e faz o seu trabalho, mas tem agido sozinho na missão de guiar a inflação para meta. Não é possível ignorar a perda na qualidade da política fiscal verificada principalmente nos últimos 2 anos. Retrocessos no teto de gastos; PEC dos precatórios; captura das despesas discricionárias pelo baixo clero do Congresso Nacional; entre outras políticas públicas com finalidade claramente eleitoral e com custos fiscais evidentes têm colaborado para a desancoragem de expectativas e perpetuação de uma inflação elevada a despeito de uma política monetária restritiva.

Desde o Real a economia brasileira só tem tido sucesso em manter a inflação baixa quando o BC recebe o auxílio de uma outra política macroeconômica. Sem a restauração da âncora fiscal, as perspectivas para juros e inflação tendem a ter viés de alta.

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